
O universo dos videogames sempre encontrou inspiração em diversas mídias, e a história de Miyamoto Usagi, o coelho samurai do aclamado quadrinho Usagi Yojimbo, é um exemplo notável. Em 1988, essa saga de honra e aventura ganhou vida de forma inusitada em um dos consoles mais emblemáticos daquela era: o Commodore 64. O jogo, intitulado Samurai Warrior: The Battles of Usagi Yojimbo, não apenas adaptou a essência da obra de Stan Sakai, mas também introduziu mecânicas inovadoras que o destacaram no cenário dos jogos de ação da época, solidificando seu lugar como um clássico inesquecível do Usagi Yojimbo C64.
A Origem do Coelho Samurai nos Quadrinhos
A saga de Usagi Yojimbo é uma criação visionária do artista nipo-americano Stan Sakai, que fez sua estreia em 1984. Inicialmente, as aventuras de Miyamoto Usagi apareceram como tiras na antologia Albedo Anthropomorphics de Steve Gallacci, e posteriormente em edições da publicação Critters da Fantagraphics Books. A popularidade do coelho samurai cresceu, culminando em sua própria série de quadrinhos em 1987, onde continuou sua peregrinação pelo Japão feudal, enfrentando caçadores de recompensas, clãs ninja e criaturas do folclore japonês.
Embora não tenha alcançado o mesmo nível de fenômeno cultural que As Tartarugas Ninja, outra criação de 1984 com animais antropomórficos e armas de inspiração japonesa, Usagi Yojimbo conquistou um status de cult. A série de Sakai é amplamente respeitada por sua narrativa rica e arte distinta, tornando-se um marco nos quadrinhos independentes. Sua influência transcendeu as páginas, levando a diversas adaptações para outras mídias, incluindo o aclamado jogo de computador para o Commodore 64 desenvolvido pela australiana Beam Software, conhecida por títulos como The Hobbit e The Way of the Exploding Fist.

Samurai Warrior: A Adaptação para o Commodore 64
Lançado em 1988, Samurai Warrior: The Battles of Usagi Yojimbo é um jogo de aventura sidescrolling que colocava os jogadores no controle de Miyamoto Usagi, o ronin coelho dos quadrinhos de Sakai. A premissa central envolvia guiar o personagem por emboscadas, tocas de monstros e cenários perigosos em uma missão para resgatar o jovem Lord Noriyuki de uma gangue de sequestradores. O projeto foi desenvolvido por uma pequena e dedicada equipe dentro da Beam Software, composta pela designer Pauli Kidd, o programador Doug Palmer, o artista Russel Comte e o compositor Neil Brennan.
Considerado por críticos da época como um título “altamente divertido” e “um corte acima de tantos outros jogos de artes marciais”, o game conquistou sucesso e permanece na memória de muitos jogadores. Para entender melhor seu desenvolvimento e as ideias por trás de suas inovações, conversamos com membros da equipe de criação, incluindo Pauli Kidd e Doug Palmer. Descobrimos detalhes sobre o design do jogo e até mesmo sobre o conteúdo que, infelizmente, não pôde ser incluído na versão final, revelando a ambição original do projeto.
A Concepção do Projeto na Beam Software
A iniciativa de transformar Usagi Yojimbo em um jogo partiu da paixão pessoal de Pauli Kidd, que tinha uma profunda ligação com o mundo dos quadrinhos alternativos em preto e branco. Kidd, amiga de Stan Sakai e editora do jogo de RPG de mesa Albedo, viu na obra do autor um potencial imenso para uma adaptação. Ela elaborou uma proposta detalhada para o “Usagi” e a apresentou aos executivos da Beam Software, convencida de que seria um projeto único e significativo.
Doug Palmer, o programador do jogo, corrobora essa visão, lembrando que Fred Milgrom, fundador da Melbourne House e Beam Software, também percebeu o entusiasmo geral em torno dos quadrinhos de Usagi. A leitura das novas edições era um evento na empresa. A popularidade de Usagi, que começou em antologias como Albedo e Critters, rapidamente se consolidou com o lançamento de sua própria série solo, criando um ambiente fértil para a aprovação e o sucesso da adaptação para o Usagi Yojimbo C64.

Sistema de Combate e a Inovadora Moralidade
Uma vez que o projeto recebeu sinal verde, o primeiro desafio da equipe foi aprimorar o sistema de esgrima. Assim como nos quadrinhos, Usagi utilizava sua katana como principal arma, e a Beam Software buscou criar um sistema de combate sofisticado que refletisse o drama e o estilo das batalhas épicas desenhadas por Sakai. Investiram tempo considerável para que a luta tivesse mais nuances do que os típicos jogos “hack-and-slash” de um botão da época.
O resultado foi um sistema que oferecia aos jogadores várias opções, permitindo aparar golpes, realizar ataques laterais e desferir investidas aéreas devastadoras, dependendo da combinação de comandos. Pauli Kidd enfatiza a importância central do combate: “A luta de espadas tinha que estar no coração do jogo. Muito desenvolvimento inicial foi para tentar criar um jogo de combate que fosse único, divertido e tivesse o estilo particular do quadrinho. Como alguém com muito conhecimento de estilos de espada japoneses, posso dizer que a visão de Stan das pessoas correndo umas contra as outras é divertida, mas ‘única’!”
O que realmente diferencia Usagi Yojimbo de outros jogos da época é a introdução de dois modos de controle distintos: “pacífico” e “violento”. Quando Usagi está com sua espada embainhada, ele se move mais lentamente e interage de forma não letal com o mundo. No entanto, ao sacar sua lâmina, ele ganha agilidade, pode atacar e saltar mais longe, acompanhado por uma música mais rápida que sinaliza a mudança de estado. Esta mecânica não é apenas um truque; ela molda profundamente a jogabilidade e as escolhas do jogador.
Enquanto muitos jogos encorajavam os jogadores a eliminar tudo em seu caminho, Samurai Warrior: The Battles of Usagi Yojimbo desestimula essa abordagem. Usagi encontra não apenas ninjas e monstros, mas também sacerdotes viajantes, nobres e camponeses. Atacar esses personagens pacíficos reduz o “karma” de Usagi – um atributo exibido no canto superior direito da tela. Se o valor do karma cair abaixo de zero, Usagi executa seppuku, uma forma de suicídio ritual japonês, encerrando a jornada do jogador. Essa mecânica instiga o jogador a ponderar cuidadosamente quando deve desembainhar sua arma.
Pauli Kidd explica a filosofia por trás dessa escolha: “Eu queria um jogo que pudesse te enganar e possivelmente te tentar a falhar. Um jogo que te fizesse pensar! O estilo usual de ‘matar tudo’ torna o jogo maçante, e novamente – a ética samurai de honra e karma é central para o quadrinho. Então, sempre tentei preservar a mensagem central da história!” Essa abordagem foi um reflexo da aversão dos desenvolvedores, incluindo Doug Palmer, à mentalidade de “usar uma arma maior” predominante nos RPGs da época, buscando uma narrativa mais rica em relacionamentos e consequências.
Decisões Morais e Interações
Em virtude da ênfase em evitar a violência desnecessária, os jogadores são incentivados a considerar suas interações com o ambiente e os personagens que encontram. A ação mais comum no modo pacífico é curvar-se (fazer uma reverência) a personagens não violentos, como os sacerdotes. Esse gesto muitas vezes revela palavras de sabedoria, que podem variar desde avisos úteis sobre emboscadas iminentes até declarações mais enigmáticas, como o Koan Zen “Se você encontrar Buda na estrada, mate-o”. Essa frase, atribuída ao monge budista chinês Linji Yixuan do século IX, certamente desafiou os jogadores mais jovens, que poderiam interpretá-la literalmente e de forma equivocada.
Além da reverência, o modo pacífico oferece outras atividades. Os jogadores podem usar o dinheiro (ryo) coletado para apostar em jogos de azar, comprar comida para manter sua saúde, ou doar ryo para sacerdotes e camponeses, o que pode aumentar o karma. Contudo, tentar oferecer dinheiro a nobres resulta em um ataque de seus guardas, uma demonstração clara de que nem todas as boas intenções são bem recebidas e que o contexto social é crucial no Japão feudal de Usagi.

Conteúdo Cortado e o Legado Duradouro
Ao longo das conversas com Pauli Kidd e Doug Palmer, ficou evidente que muitos recursos ambiciosos foram planejados no script original do jogo, mas acabaram sendo cortados da versão final para se adequar às limitações do Commodore 64. Palmer já havia revelado, por exemplo, que o artista Russel Comte havia criado artes para o Clã Mogura, um grupo de toupeiras ninja que apareceria como inimigos adicionais, e que muitos outros eventos estavam previstos para serem encontrados pelos jogadores.
Pauli Kidd aprofundou esses detalhes, mencionando uma variedade de elementos que não chegaram ao corte final: “Deveria haver muitas outras coisas. Salvar cavaleiros arrastados por cavalos, escoltar reféns resgatados e ver seu retorno seguro… Havia muito mais caminhos ramificados no design, mas todos foram cortados.” Isso incluía paisagens espetaculares com áreas de marés, caminhos montanhosos nevados propensos a avalanches e castelos assombrados completos com fantasmas, onde a solução para as assombrações seria simples, como entregar os ossos das vítimas a um monge para serem abençoados e enterrados, concedendo descanso aos espíritos.
Além disso, um Kappa, criatura lendária do folclore japonês e personagem que Usagi Yojimbo enfrenta na edição #5 de sua série solo de 1987, também estava programado para fazer uma aparição. Apesar desses cortes, a equipe se orgulha do que conseguiu realizar com a adaptação. O jogo recebeu aclamações da imprensa da época, incluindo uma impressionante nota de 91% da revista Zzap!64 e 90% da Crash Magazine, onde foi descrito como “simplesmente encantador” e recomendado com fervor aos jogadores, solidificando o status do Usagi Yojimbo C64 como um título marcante.

O Impacto e as Outras Versões
No mesmo ano do lançamento para o Commodore 64, Samurai Warrior: The Battles of Usagi Yojimbo recebeu conversões para os sistemas Amstrad CPC e ZX Spectrum. Essas adaptações foram terceirizadas para a empresa Source Software, com a versão para ZX Spectrum sendo desenvolvida por Dave Semmens e Ross Harris. A versão para Amstrad CPC é creditada a uma equipe que inclui Gregg Barnett, Cameron Duffy e Dam, embora Barnett, contatado posteriormente, não se lembrasse de sua participação no projeto.
Para Doug Palmer, o jogo acabou sendo seu “canto do cisne” no desenvolvimento de games antes de se dedicar à academia. Já para Pauli Kidd, a experiência com Usagi Yojimbo aprofundou seu interesse crescente pelas artes e cultura japonesas, uma paixão que perdura até hoje. Kidd se tornou uma especialista em história e mitologia japonesa, com conhecimento em artes marciais com armas e autora de regras para miniaturas históricas como Bushidan e Heiho, the Art of War, além de uma série de romances chamada Spirit Hunters. A memória do jogo de Usagi Yojimbo, para ela, permanece como um divertido ponto de partida nessa jornada, e ela mantém contato com Stan Sakai até os dias atuais, testemunhando a continuidade desse legado.
